Para a maioria das pessoas, gera
desconforto prestar fiança a amigos ou parentes. Não é pra menos. Ser a
garantia da dívida de alguém é algo que envolve riscos. Antes de afiançar uma
pessoa, é preciso ficar atento às responsabilidades assumidas e, sobretudo, à
relação de confiança que se tem com o afiançado. Afinal, não são poucas as
histórias de amizades e relações familiares rompidas que começaram com um
contrato de fiança.
Prova disso são os casos envolvendo
fiança que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Impasses que levaram a
uma expressiva coletânea de precedentes e à edição de súmulas.
A fiança é uma obrigação assumida
por terceiro, o fiador, que, caso a obrigação principal não seja cumprida,
deverá arcar com o seu cumprimento.
Ela tem natureza jurídica de
contrato acessório e subsidiário, o que significa que depende de um contrato
principal, sendo sua execução subordinada ao não cumprimento desse contrato
principal pelo devedor.
Entrega das chaves
Em um contrato de aluguel,
portanto, o proprietário do imóvel exigirá um fiador, e, até a entrega das
chaves, será ele a segurança financeira da locação do imóvel.
Essa “entrega das chaves”, no
entanto, tem gerado muita discussão nos tribunais, sobretudo nas execuções
contra fiadores em contratos prorrogados, sem a anuência destes.
O enunciado da Súmula 214 do STJ
diz que “o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de
aditamento ao qual não anuiu”.
No entanto, é preciso ficar atento,
por que se existir no contrato de
locação cláusula expressa prevendo que os fiadores respondem pelos débitos
locativos, até a efetiva entrega do imóvel, subsiste a fiança no período em que
o referido contrato foi prorrogado, mesmo sem a anuência do fiador (AREsp
234.428).
Notificação resilitória
O Código Civil de 2002 também
trouxe mudanças em relação à exoneração do fiador. Enquanto o Código de 1916
determinava que a exoneração somente poderia ser feita por ato amigável ou por
sentença judicial, o novo código admite que a fiança, sem prazo determinado,
gera a possibilidade de exoneração unilateral do fiador.
Para que isso aconteça, o fiador
deve notificar o credor sobre a sua intenção de exonerar-se da fiança. A
exoneração, contudo, não é imediata. De acordo com a nova redação da Lei
8.245/91, o fiador fica obrigado por todos os efeitos da fiança durante 120
dias após a notificação do credor. Neste caso, o locador notifica o locatário
para apresentar nova garantia locatícia no prazo de 30 dias, sob pena de
desfazimento da locação.
Novo fiador
Além dos casos de exoneração, o
locador também pode exigir a troca do fiador nas seguintes situações: morte do
fiador; ausência, interdição, recuperação judicial, falência ou insolvência do
fiador declarados judicialmente; alienação ou gravação de todos os bens imóveis
do fiador ou sua mudança de residência sem comunicação do locador e também ao
final de contratos por tempo determinado.
Outorga uxória
O locador também deve ficar
atento às formalidades da lei no que diz respeito à outorga uxória do fiador. A
outorga uxória é utilizada como forma de impedir a dilapidação do patrimônio do
casal por um dos cônjuges. Por isso, a fiança prestada sem a anuência do
cônjuge do fiador é nula. É exatamente daí que vem o enunciado da Súmula 332 do
STJ:
“Fiança prestada sem autorização
de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia.”
No julgamento de Recurso Especial
1.095.441, no entanto, a Sexta Turma relativizou o entendimento. No caso, o
fiador se declarou separado, mas vivia em união estável. Na execução da
garantia do aluguel, sua companheira alegou a nulidade da fiança porque não
contava com sua anuência, mas os ministros entenderam que permitir a anulação
seria beneficiar o fiador, que agiu de má-fé.
Fiança e morte
A outorga uxória vincula o
cônjuge até mesmo com a morte do fiador. De acordo com a jurisprudência do STJ,
a garantia, que foi prestada pelo casal, não é extinta com o óbito, persistindo
seus efeitos em relação ao cônjuge (REsp 752.856).
O mesmo não acontece, entretanto,
se o locatário morre. Antes da alteração da Lei do Inquilinato, os débitos
advindos depois do falecimento, não eram direcionados ao fiador.
Com as alterações de 2009, o
fiador poderá exonerar-se das suas responsabilidades no prazo de 30 (trinta)
dias, contado do recebimento da comunicação do falecimento, ficando responsável
pelos efeitos da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação ao
locador.
Benefício de Ordem
Se, todavia, nos embargos à execução
não puder ser invocada a ausência de outorga uxória ou mesmo a morte do
locatário, poderá o fiador lançar mão do Benefício de Ordem.
O Benefício de Ordem é o direito
que se garante ao fiador de exigir que o credor acione primeiramente o devedor
principal. Isto é, que os bens do devedor sejam executados antes dos seus.
No entanto, o fiador não poderá
se aproveitar deste benefício se no contrato de fiança estiver expressamente
renunciado ao benefício; se declarar-se como pagador principal ou devedor solidário;
ou se o devedor for insolvente ou falido.
Não adianta nem mesmo alegar que
a cláusula de renúncia é abusiva, como foi feito no Recurso Especial 851.507,
também de relatoria do ministro Arnaldo Esteves de Lima.
Bem de família
É importante atentar também que,
uma vez assumida a obrigação de fiador, não será possível alegar
impenhorabilidade de bens na execução, ainda que se trate de seu único imóvel,
ou seja, o bem de família.
Foi o que aconteceu no julgamento
do Recurso Especial 1.088.962, de relatoria do ministro Sidnei Beneti. No caso,
o tribunal de origem considerou o imóvel como bem de família e afastou a
penhora, mas o acórdão foi reformado.
Destaca-se que o Supremo Tribunal
Federal, em votação plenária, proferiu julgamento no Recurso Extraordinário
407688, segundo o qual o único imóvel (bem de família) de uma pessoa que assume
a condição de fiador em contrato de aluguel pode ser penhorado, em caso de
inadimplência do locatário”, justificou o ministro.
A medida está amparada no artigo
3º da Lei 8.009/90, que traz expresso:
“A
impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal,
previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movida por obrigação
decorrente de fiança concedida em contrato de locação.”
No julgamento do Recurso Especial
1.049.425, o ministro Hamilton Carvalhido, relator, chegou a manifestar sua
opinião sobre a inconstitucionalidade da lei, mas, diante do entendimento do
STF que considerou constitucional a penhora e da jurisprudência do STJ, votou
conforme o entendimento firmado, mesmo sem concordar.
Eu discordo do entendimento do
ilustre relator, se o fiador deu em garantia o seu único bem, deve referido
imóvel ser descaracterizado como bem de família e deve ser sujeitado à penhora
para satisfação da dívida afiançada, sob pena de ferir o princípio da Boa Fé
Objetiva, contemplado expressamente no Código Civil Brasileiro.
Sobre
a boa-fé objetiva, bem escreveu Cláudia
Lima Marques
"Efetivamente, o
princípio da boa-fé objetiva na formação e na execução das obrigações possui
uma dupla função na nova teoria contratual: I) como fonte de novos deveres
anexos; e 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo,
dos direitos subjetivos".
É
neste sentido que leciona Luis Renato
Ferreira da Silva, considerando que
"a regra da
boa-fé objetiva implica numa série de efeitos que podem ser esquematicamente
resumidos a) no controle corretivo do Direito estrito, b) no enriquecimento do
conteúdo da relação obrigacional; e c) na negação em face do postulado pela
outra parte. Todos estes efeitos se produzem a partir de critérios objetivo e
não baseados na subjetividade do intérprete e do aplicador da lei. “
É
importante que se tenha presente a noção de boa-fé dentro de critérios
objetivos. Procurando a boa-fé nas intenções subjetivas dos contratantes,
entraríamos no campo da moral interna destes, local onde estão localizados
sentimentos de difícil medida e constatação por terceiros.
No
que tange ao princípio da boa fé temos também o ensinamento de Renata Mandelbaum onde
“assim, através da
aplicação dos princípios que regem a nova realidade contratual, busca-se a
segurança jurídica, mas não através da liberdade contratual, onde imperava a
supremacia da "palavra dada" (pacta sunt servanda), mas através da
tutela da confiança e da boa fé, banhados pelo princípio da justiça
contratual.”